CAPÍTULO 16
uma novela de
FELIPE LIMA BORGES
livre adaptação do livro de Rute
Edição da Versão Reprise por
RAMON FERNANDES
EDIÇÃO:
Restante do Capítulo 24 + Capítulo 25 ORIGINAL (SEM CORTES)
CENA 1: EXT. MATA – DIA
Pouco tempo depois, os quatro ajudam a subir o corpo de Dov, enrolado em um pano, até a caverna onde estavam escondidos.
Mais um tempo depois, ficam ali quietos, tristes, em silêncio...
Posteriormente, eles fecham a entrada da caverna com um amontoado de pedras. Respiram fundo...
FADE OUT:
FADE IN:
CENA 2: INT. HOSPEDARIA – DIA
No balcão, Salmon conversa com o dono.
DONO— Esse foi o único que continuou a me vender, e também o único de fora de Israel disposto a continuar a vir até aqui. O deserto está mais perigoso que nunca, e a verdade é que não seria nenhuma surpresa se também ele desistir de vir até Belém.
SALMON— São muitas as dificuldades... Que barulho é esse?
DONO— Barulho?
SALMON— Sim, escute...
Eles ficam em silêncio e o dono tenta ouvir. Então seu semblante denuncia que ele está escutando.
DONO— Parece... parece...
Salmon olha para a entrada, o barulho aumenta, aumenta... Até que uma multidão imparável de pessoas arregaça a porta da entrada e invade a hospedaria.
DONO— AAAAHHHH!!!!
HOMEM— A comida! Deve estar ali atrás!
MULHER— Lá! Deve ter!
A multidão se espalha e começam a quebrar e revirar as coisas atrás de comida. A maioria vai para trás do balcão, onde está o dono, desesperado. Salmon tenta falar alto, chamar, tocar as pessoas, mas nada adianta. O povo pega o dono, o levantam e o carregam de braço em braço, até ele ser jogado para longe do balcão.
DONO— (jogado no chão) Que disparate! Selvagens! Todos vocês, selvagens da pior espécie! Aaahhh!!!
Neb chega correndo e logo se junta à multidão em busca das coisas. O dono o nota.
DONO— NEB!!! Seu desgraçado!!!
NEB— Não sou só eu! Olha esse povo todo aí!
E continua a revirar as coisas. Mas então percebe que Salmon o observa, parado e com um olhar decepcionado. Neb fica desconcertado, disfarça, se afasta e sai correndo para a rua.
SALMON— Chega! CHEGA!!! Parem com isso! Estão invadindo uma casa! Isso é roubo!!! Estão indo contra os mandamentos de Deus!!!
Mas não adianta. Então, conforme as pessoas vão conseguindo algo, vão indo embora. Até que saem os últimos. Sentado no chão, o dono lamenta.
DONO— Estou mais lascado que pedra de amolar...
CENA 3: EXT. DESERTO – DIA
Montados em seus cavalos, os membros da Caravana discutem tensamente. Apenas um vai à pé, guiando as ovelhas.
HOMEM 1— Deveríamos voltar, senhor. Continuar as buscas. Eles não podem estar longe!
SEGISMUNDO— Nós já vasculhamos a mata, os galhos, e nada deles! Nem mesmo olhando do alto, não estão em parte alguma do deserto! É como se tivessem sido arrebatados...
HOMEM 2— Mas antes de retornarmos a Belém poderíamos dar mais uma olhada, senhor. Apenas por precaução.
GAEL— Não faz sentido. Fomos surpreendidos pelos saqueadores. Deveríamos ter pensado que eles se multiplicariam e ficariam mais perigosos. Nós precisamos de treinamento, para toda a sorte de coisa que há por aí.
SEGISMUNDO— Eu concordo com Gael.
HOMEM 1— Tamires vai ficar zangada...
SEGISMUNDO— E eu lá estou preocupado com isso?!!! Vamos! De volta a Belém!
Não muito longe dali, na árvore onde tudo aconteceu, a família já ajeitou todas as coisas na carroça para partirem.
QUILIOM— Vamos mesmo para Moabe?
ELIMELEQUE— É o reino mais próximo... Não temos escolha.
Elimeleque auxilia Noemi a subir na carroça e eles partem dali.
CENA 4: INT. HOSPEDARIA – DIA
Boaz e Josias descem a escada, mas param ao ver o salão destruído: mesas viradas, copos e vasos quebrados, estantes caídas... Salmon está ali arrumando algumas coisas.
BOAZ— O que foi que aconteceu aqui?
SALMON— Pergunto o mesmo ao Neb.
Boaz e Josias saem da escada e pisam no salão, e veem que Neb está sentado em uma cadeira, constrangido.
NEB— Eu já disse, tio... Estava apenas garantindo que as coisas desse senhor ficassem onde deviam ficar--
DONO— (interrompendo) Mentiroso!!!
Boaz olha e nota o dono sentado no balcão.
DONO— E vem já aqui me ajudar a descer! É o mínimo que você pode fazer!
Neb expira fundo e vai até o balcão dar o ombro de apoio para que o dono desça do balcão.
NEB— Quase metade da cidade pegou suas coisas e o senhor desconta tudo em mim.
DONO— Calado! Ah, que raiva!!!
BOAZ— Ahn, bom... Nós vamos sair, conhecer a cidade... Dar uma olhada...
SALMON— Tudo bem, meu filho.
BOAZ, JOSIAS— Shalom.
SALMON— Shalom.
O dono encara Neb com raiva.
CENA 5: INT. CASA DE IAGO – COZINHA – DIA
Tamires mexendo nas coisas da cozinha e Maya sentada à mesa. Tamires serve água em um copo e leva até a amiga.
MAYA— Obrigada.
Enquanto Maya bebe, Tamires volta para mexer na única panela no fogo. Porém, apesar de ela mexer o caldo, seu olhar é distante... Está aérea. Maya termina de beber.
MAYA— Tamires.
Tamires continua aérea e mexendo a colher melancolicamente.
MAYA— Tamires... (pequena pausa) Tamires!
Tamires sai do seu transe e vai até Maya.
TAMIRES— Desculpe, eu estava perdida em meus pensamentos...
MAYA— O que será que te tirou daqui?...
TAMIRES— Ah, Maya, a vida...
Maya sorri.
MAYA— (entregando o copo) Aqui. Obrigada.
Tamires leva o copo para a bancada e volta aos seus pensamentos.
TAMIRES— (baixinho) Será que a essa hora você já partiu desse mundo, Noemi?... Quem sabe?...
CENA 6: EXT. BELÉM – RUAS – DIA
Boaz e Josias caminham pelas ruas cheias de destroços e crateras.
JOSIAS— É, meu amigo, essa cidade vai precisar de uma boa reconstrução.
BOAZ— Reconstruir, sim, mas segundo a vontade de Deus.
JOSIAS— Claro, sempre.
BOAZ— Fazer tudo conforme o Senhor queira, assim como era nos tempos dos grandes Moisés e Josué.
JOSIAS— (batendo no ombro do amigo) Essa missão é sua, varão valoroso!
BOAZ— Nem me fale, Josias! Imagine só se fosse... Ainda bem que tenho meus pais. Brilhantes administradores...
Josias sorri.
CENA 7: EXT. DESERTO – DIA
Elimeleque, Noemi, Malom e Quiliom continuam a caminhada pelo deserto. Gradualmente a paisagem vai mudando e eles vão adentrando terras ainda mais inóspitas...
CENA 8: INT. CASA DE SEGISMUNDO – SALA – DIA
Tamires está ali, sozinha. E o que ela faz é dançar! Dançar como se não houvesse amanhã... Vai de lá para cá, daqui para lá, de um lado para o outro, roda, pula, abre os braços... Uma comemoração.
Então ouve-se sons de cavalos se aproximando. Pouco depois, a porta se abre e Segismundo entra seguido por Gael. Tamires os olha empolgadíssima!
TAMIRES— E então?!
Parado, Segismundo a encara.
CENA 9: INT. CASA DE IAGO – SALA – DIA
A porta se abre e Iago entra. Maya está arrumando objetos da casa.
MAYA— Meu amor...
IAGO— Oi...
Iago a beija. Então mostra algo em sua mão, um pedaço de pão.
IAGO— Foi tudo o que eu encontrei... A cidade está uma confusão, achei jogado na rua.
Maya triste.
MAYA— E vai ter que dar para nós três.
IAGO— Bom, se você quiser, Tamires nem fica sabendo...
MAYA— Iago... Ela é nossa amiga... Também precisa comer.
IAGO— Você está grávida, meu amor. Precisa se alimentar e alimentar nosso filho...
MAYA— (sorrindo) “Nosso filho”... Que delícia ouvir isso depois de tanto tempo...
IAGO— (de boca cheia) Nosso filho! Nosso filho! De Maya e Iago!
Maya sorri mais, e Iago a beija e a abraça repetindo.
IAGO— Nosso filho, nosso filho! Nosso filho, meu amor!!!
Os dois felicíssimos...
CENA 10: INT. CASA DE SEGISMUNDO – SALA – DIA
Os homens da Caravana parados na entrada. Segismundo e Gael encaram Tamires.
TAMIRES— E então?! Digam de uma vez! Mataram Noemi? Acabaram com aquela família nojenta?!
SEGISMUNDO— Não, não os matamos.
TAMIRES— O quê?! Como assim, o que você está dizendo?!
SEGISMUNDO— Não pudemos.
O semblante de Tamires é de fúria.
TAMIRES— Eu não mandei irem até lá?! Não era simples?! Seis homens contra três!!! SEIS!!! CONTRA TRÊS EM COMBATE!!! Estavam em vantagem muito maior!!! E ainda tem a coragem de retornar aqui com aqueles quatro ainda respirando???!!!
Segismundo se aproxima dela devagar, o olhar raivoso.
SEGISMUNDO— Não sei se percebeu, mulher, mas está em minha casa, na minha sala. Abaixa o tom da sua voz, pra não ser pior.
TAMIRES— (encarando-o) Você não me assusta, Segismundo.
Gael se aproxima.
GAEL— Vamos conversar. Tamires, nós vamos contar o que aconteceu exatamente.
Segismundo se afasta de Tamires.
SEGISMUNDO—Nós os encontramos no deserto e os surpreendemos. E entramos em combate... O problema é que também fomos surpreendidos por um grupo de saqueadores que tentaram se apossar das coisas da família. Não tivemos escolha senão enfrenta-los, e foi quando Elimeleque e sua família aproveitaram para fugir.
Tamires aperta os lábios de raiva.
GAEL— Não tivemos muita dificuldade em derrota-los, éramos superiores. Mas eram muitos... Isso nos atrasou.
TAMIRES— Eram superiores aos saqueadores, mas inferiores a Elimeleque e seus malditos filhos!
GAEL— Não há como negar.
SEGISMUNDO— Mas não por muito tempo, não! Nós treinaremos, dia após dia, incansavelmente--
TAMIRES— (interrompendo) Ao menos conseguiram pegar algo?
SEGISMUNDO— Apenas as ovelhas. Estão aí fora.
TAMIRES— Ovelhas, ovelhas! Isso sacia apenas a fome, isso acaba! Deviam ter trazido ouro, Segismundo! Ouro! Joias, objetos de valor!
SEGISMUNDO— Você vai comer ouro, mulher? Vai fazer ensopado de joias?! Olha a crise aí fora! Temos que nos preocupar é com comida! E vamos repartir as ovelhas igualmente. Estamos salvos por alguns dias.
TAMIRES— É triste!... De que adianta a glória dos autores, se os executores não têm a mesma competência?
SEGISMUNDO— É bom você diminuir, Tamires! Já contei sobre o contratempo que tivemos!
TAMIRES— Então vocês voltarão. Vão atrás deles de novo, e rápido!
SEGISMUNDO— Não é viável, ainda somos poucos e precisamos de treinamento, como eu já bem disse. Também quero minha vingança contra Elimeleque, mas precisamos de tempo.
TAMIRES— Não há tempo! Pois a cada palavra que falamos aqui, eles ficam um passo mais distante! E o pior é que, se fugiram, podem ter ido para qualquer canto!
SEGISMUNDO— Nós treinaremos e faremos o que tiver que fazer o mais rápido possível. Mas, por enquanto, você vai precisar ter paciência, mulher.
Tamires se aproxima dele.
TAMIRES— Tamires! Vale pra todos!
Os homens a encaram.
CENA 11: EXT. DESERTO – DIA
As terras por que passam Elimeleque, Noemi, Malom e Quiliom tornam-se inóspitas de vez. Nesse momento, cruzam uma vasta planície árida com algumas poucas vegetações secas. Noemi caminha junto a eles.
QUILIOM— O visual é formidável!
MALOM— Não fosse nossa situação, eu saberia apreciar essa beleza toda.
NOEMI— Gente, eu estou sentindo de orar...
Elimeleque para e olha para os filhos, que fazem que sim.
ELIMELEQUE— Vamos todos.
Quando ele olha de novo para a esposa, ela já está ajoelhada, com os olhos fechados e mexendo os lábios em oração. Logo Elimeleque, Malom e Quiliom fazem o mesmo e todos oram.
CENA 12: EXT. BELÉM – DIA
Boaz e Josias caminham pela rua quando avistam, logo à frente, Neb.
JOSIAS— Olha lá seu primo pilantra.
Nesse mesmo momento eles presenciam um homem, na frente de Neb, deixar algo cair, e Neb pegar, olhar o que é e guardar em seu bolso. O problema é que o homem percebeu que perdeu o objeto e, ao olhar para trás, viu Neb guardando algo no bolso.
HOMEM— Ei, você...
NEB— O quê?
HOMEM— Você, o que tem no bolso?
NEB— No bolso? Nada, só minhas coisas.
HOMEM— Eu vi você guardando algo rapidamente, me mostra, vai...
NEB— (esquivando) Não, negativo. O senhor não tem esse direito!
HOMEM— Você pegou algo meu! Acabei de deixar cair e você pegou! Vamos, esvazie o bolso!
NEB— Isso é uma afronta! O senhor está invadindo o meu espaço! Mas que absurdo! Um disparate!
HOMEM— Não seja cínico! Tenha honra e devolva o que pegou de mim!
NEB— O senhor está é ofendendo a minha honra com tamanha acusação! Essa cidade já foi mais honesta que isso! Essa crise está criando homens... homens... desprezíveis! Que vergonha, que vergonha!
Neb sai indignado. O homem, aparentemente, se arrepende.
HOMEM— Senhor! Senhor, perdão, talvez eu tenha me enganado...
NEB— (indo embora) Não, não! Só me resta a vergonha dessa cidade!
Neb some por outra rua. Boaz e Josias se olham e balançam a cabeça negativamente.
BOAZ— Pilantra é pouco.
CENA 13: EXT. CASA DE SEGISMUNDO – OFICINA LATERAL – DIA
Na oficina de Segismundo, com livre abertura para a rua, ele desmonta a cela de seu cavalo. Gael está ali também.
SEGISMUNDO— Nós precisamos muito de treinamento, Gael, mas precisamos também aumentar imediatamente o número de homens.
GAEL— Providenciarei isso.
CENA 14: INT. HOSPEDARIA – DIA
Em uma das mesas do ainda bagunçado salão, Salmon e Raabe falam com Boaz, Josias e Tani. O dono não está ali.
SALMON— Tani, Raabe e eu chamamos você aqui para falar sobre o plano que temos para reerguer Belém da miséria e perguntar se podemos contar com você.
Tani faz que sim.
TANI— Sou toda ouvidos.
SALMON— Nós pretendemos muito em breve comprar uma boa casa e sair da hospedaria. Também aproveitaremos para comprar uma boa porção de campo. Agora os preços devem ter despencado. E, posteriormente, plantar nesse campo.
TANI— Plantar? Com essa crise nada nascerá, senhor. E, se nascer, será consumido por pragas ou arrancado por vendavais...
SALMON— Aí é que está o detalhe do plano, minha cara. Nós faremos tudo isso com fé! Orando sem cessar e pregando para o povo.
TANI— Noemi e eu já tentamos isso. Foram poucos os que entenderam e aceitaram. Os outros nos expulsaram do meio deles.
RAABE— Mas agora o povo está sensível, Tani. Eles viram para onde seu comportamento os levou. Estão mais suscetíveis a serem convertidos.
SALMON— Por ser amiga de Noemi, já confiamos muito em você. Por isso perguntamos se podemos contar com a sua ajuda nessa tarefa.
TANI— Sim, claro, com toda a certeza. Tudo pelo bem do meu povo e da minha cidade.
BOAZ— Shalom, Neb.
Todos olham e veem Neb chegando ali.
NEB— Shalom... a todos.
SALMON— Sente-se, Neb.
NEB— Obrigado, tio. E então, o que estão fazendo? Algum serviço, alguma tarefa em que posso lhe ser útil? Como posso servir meus bons tios?
Boaz e Josias se olham com um sorrisinho.
SALMON— Por enquanto não precisa se preocupar, Neb. Obrigado.
Neb senta ao lado de Tani.
RAABE— Por que não nos fala de você, Neb?
NEB— De mim?
RAABE— Sim... Se me permite a pergunta, por que nunca se casou?
NEB— Ah, eu-- (espirra) Veja só, senhora Raabe. A verdade é que eu simplesmente não quero saber de casa-- (espirra) mento!
Neb funga o nariz e todos o olham descontraídos. Então Boaz e Josias trocam olhares, se segurando para não gargalhar.
CENA 15: EXT. DESERTO – NOITE
O dia passa e a noite cai.
Em meio à escuridão do deserto, uma fogueira no chão e Noemi e Elimeleque sentados, abraçados.
NOEMI— Eles estão demorando, Elimeleque.
ELIMELEQUE— Demora encontrar uma caça, ainda mais na escuridão. Acertá-la, então...
Noemi respira fundo. Então olha para o marido.
NOEMI— No que está pensando?
ELIMELEQUE— No que Segismundo disse... Que há pessoas em Belém que querem o nosso sangue derramado. E que havia algo a mais ali para ser feito. (pequena pausa) Você sabe bem quem sempre foi contra nós, principalmente contra você. Quem, quando estávamos indo embora, gritou histericamente que queria nós todos mortos no deserto.
Noemi o encara pensativa.
NOEMI— Acha que Tamires mandou nos matar?
Elimeleque encara o fogo. De repente, barulhos. Ele olha para trás e vê as chamas de duas tochas se aproximando.
ELIMELEQUE— Malom?...
MALOM— Pai!...
Malom e Quiliom chegam ali segurando as tochas com uma mão e uma carcaça de animal com a outra.
QULIOM— Mãe, pai!... Nosso jantar!
Todos sorridentes.
Mais tarde, uma panela pendurada em cima da fogueira. De um lado, Malom e Quiliom entretidos. Malom se concentra em arrancar, com os dentes, toda a carne de um pedaço de osso, e Quiliom bebe o caldo de sua cumbuca como se não houvesse amanhã.
MALOM— Isso são modos, Quiliom?!
QUILIOM— Ah, se concentra na sua flauta aí! Modos, tsc! Estamos no deserto, não na praça de Belém.
Do outro lado, Noemi e Elimeleque os observam sorrindo.
ELIMELEQUE— Seus filhos...
NOEMI— Meus, ahn? Meus filhos, né, Elimeleque?...
Eles riem.
ELIMELEQUE— Sabe, faz tempo que não te vejo sorrindo assim...
NOEMI— Pra falar a verdade, nem eu sei como estou sorrindo. Depois de tudo que aconteceu hoje... Segismundo, aqueles homens, Dov assassinado na nossa frente...
ELIMELEQUE— Tente não pensar nisso, meu amor. Logo estaremos distantes de tudo isso. A questão é que precisamos nos cuidar mais, o deserto esconde muitas surpresas.
NOEMI— Sabia que, na hora do confronto... eu me preocupei mais com os meninos do que com você?
ELIMELEQUE— Eu entendo que filhos são filhos, mas... não acho que eu pensara assim. Estaria preocupado igualmente com eles e com você--
NOEMI— (interrompendo) Não, Elimeleque. Eu me preocupei mais com eles porque, de certa forma, eu sabia que você não morreria.
Elimeleque franze o cenho, não entende.
ELIMELEQUE— Por quê?
NOEMI— Ah, meu amor... Por causa da Promessa. Lembra do que o anjo disse? Que o meu amor estaria ao meu lado até o último dia da minha vida?
Elimeleque ri.
ELIMELEQUE— Sendo assim, você tem toda a razão. (pequena pausa) Então isso significa que você vai partir primeiro que eu... Isso não me agrada nem um pouco, Noemi. Já que é assim, vou te proteger ainda mais, pra que nada me aconteça!
Noemi ri bastante.
NOEMI— Seu bobo...
Alguns segundos de silêncio em que eles se recuperam das risadas. Depois, Noemi cantarola baixinho enquanto Elimeleque, encarando o fogo, entra num estado de profunda reflexão. Ficam assim por um bom tempo...
Um bom tempo...
Apenas os sons distantes de Malom e Quiliom e o crepitar do fogo...
Então Elimeleque quebra o silêncio.
ELIMELEQUE— E se a Promessa não for sobre mim?
Noemi demora a sair de sua tranquilidade e a olhar para ele.
NOEMI— Quê?
ELIMELEQUE— E se a Promessa não se referia a mim?
Confusa, Noemi faz que não.
NOEMI— Isso não faz o menor sentido, Elimeleque. É claro que a Promessa era sobre você. Por que está dizendo isso? Não tem o menor cabimento.
Elimeleque encara o nada.
NOEMI— Por que seria diferente? Por que o anjo falaria de um suposto segundo casamento, algo tão no futuro?
ELIMELEQUE— Certo, Noemi, mas e se a Promessa nem mesmo se referia a um casamento?
Noemi franze o cenho muito expressivamente e se ajeita. Olha para ele.
NOEMI— Elimeleque, o que está acontecendo? Você bebeu escondido, foi?
ELIMELEQUE— Claro que não, Noemi.
NOEMI— Então que perguntas são essas? Como é que a Promessa não se referia a um casamento, vide as palavras que o anjo usou? Se tem algo que eu decorei, foram elas. “De mui longe virá um amor que transbordará as botijas de seu coração. Um amor que estará ao teu lado até à hora de repousares com os teus antepassados. Um amor puro, um amor incondicional. Um amor da parte do Senhor”. Você veio de longe, Elimeleque. Chegou em Belém no mesmo dia. E se tem algo que é puro, incondicional e da parte do Senhor, é o nosso amor.
Elimeleque escuta pensativo.
NOEMI— Por que essas indagações, meu amor?
ELIMELEQUE— É só algo pra se falar...
NOEMI— Besteira, infundada e sem sentido. É claro que a Promessa falava sobre nós dois.
Obrigado pelo seu comentário!